a fera de Chaves

Na deliciosa compliação de Mário Cesariny- Horta de Literatura de Cordel, encontra-se uma história, publicada em Lisboa no ano de 1760, do género “o incrível acontece”. Como era costume da época, o longo e ponposo título explica logo de que se trata: ”Relação verdadeira da espantosa fera, que há tempos a esta parte tem aparecido em as vizinhanças de Chaves: Os estragos que tem feito, e as diligências que se fazem para a apanharem: segundo as notícias participadas por cartas de pessoas daquela Província”.
O pequeno texto foi publicado em Lisboa, pela Oficina de Joseph Filippe e inclui duas estampas muito curiosas mostrando a terrível fera que andava a devorar o gado e a atemorizar a população daquela comarca.

O pretenso naturalismo da descrição e esboço detalhado do bicho é suficiente para se atestar a fantasia que o animava – trata-se, nem mais nem menos, de uma velha manticora com ligeiras adaptações genéticas, perfeitamente compreensíveis para um animal fantástico que percorreu a Antiguidade e toda a Idade Média, para chegar ao nosso país em plena época das luzes.
A manticora, esse animal diabólico com corpo de leão, face humana e cauda mortífera com aguilhão de escorpião, era de tal forma ávido de sangue e carne humana que possuía três fileiras de dentes para melhor tragar as presas.
Ctésias de Cnido (sec.V aC- segundo informação de Plínio o Velho) foi um dos primeiros a referi-lo, localizando-o na Índia. Aparece no mapa de Hereford e vai ter longa divulgação ao longo da Idade Média.
As mutações que a manticora vai sofrendo chegam a passar por confusões com macacos como nas descrições de André Thévet, acabando acabar por servir para a classificação de um tipo de escaravelhos, de tal modo predadores, que são conhecidos como os tiranossauros dos insectos.

Neste caso, o que importa é o facto da segunda imagem da fera que atormentou a nossa terra ser muito semelhante a um monstro que Alfred Jarry incluiu no hermético César Anticristo.
Dada a distância temporal e sem mais razões para se imaginar que conhecesse este relato flaviense, o mais provável é provirem ambos de outras estampas populares mais antigas.
Quem estiver interessado, tem aqui um bom pretexto para buscar elos perdidos.

Por agora fica apenas uns excertos do relato:

Prodigiosa é a natureza na criação de seus indivíduos, assim terrestres como aquáticos, sendo a sua variedade que por mais que os naturalistas se empenharam na sua descrição, foi ela matéria muito superior às suas forças: nós porém que habitamos em o jardim da Europa qual é na opinião de muitos a nossa Espanha, admiramos o que muitos têm por natural.
Na África não costumam os naturais sair das Cidade, Vilas ou Lugares sem a escolta suficiente para a defensa de monstruosas Feras, que criadas nos incultos matos são estrago geral de quantos encontram; a Ásia não menos abundante é de animais ferocíssimos, a América bem sabemos que na sua vastidão se criam as maiores Serpentes…
(e continua dando exemplos de todo o tipo de feras e estragos, passando pelo Brasil e terríveis onças, até chegar à calma da península que, tirando os lobos, estava livre de todas estas alimárias predadoras. Mas, chegados a Chaves, a coisa muda de feição. O bicho já por cá tinha andado e agora voltara .”(…)tem causado em toda a Província danos inconsideráveis como são o ter feito vítimas da sua ferocidade a quantos arrasta aos seus encontros e forma (…) arbitra-se o número de mortes a mais de cem, e todas elas lamentáveis por serem as mais do sexo feminino… (este detalhe tem muito que se lhe diga mas não vou ser eu a fazê-lo…)
Depois, egue-se a parte mais realista que inclui identificação de temerários que se atiraram ao bicho – para além das montarias dos habitantes, foram chamados soldados a cavalo mas nada resolveram.
Um mancebo corajoso também não teve melhor sorte– “de agigantadas forças e mais animoso que afortunado, tomando por empresa vencer esta batalha se encontrou com ela, tendo por arma um bem afiado machado, e espetando-a ao passar pretendeu fazê-la despojo do seu valor, errou por falta de fortuna o golpe”.
Seguiu-se um indómito cavaleiro bem armado que deve ter ficado um tanto vexado, pois nem com uma lança lhe perfurou as conchas (sic) e muito menos serviram os tiros de fogo, pos a feral usava estas placas como escudos.
O resultado da caçada fica por saber-se. A fera continuava a monte neste ano da graça de 1760, restando ao autor apelar a Deus e confiar nas armas.
Termina com um sinal de esperança onde sobressai o poder defensivo da altura:
“… De forma que se dispõe contra este bicho uma campanha, aonde vão Soldados de pé e de Cavalo com toda a comodidade para se bloquear o monte, ou terra ou habitação, e ali se demorarem até, ou que se encontre, o que a necessidade sair ao campo o obrigue. O Céu o permita que possa efectuar-se esta diligência, dizem que o General Veiga comete esta empresa a seu filho Francisco António que com sessenta Cavalos e duzentos Infantes se vem ajudar com a mais gente.
Não sabemos o desfecho mas só se lamenta que Alfred Jarry ao cruzar-se com a imagem não tenha também dado com este nosso relato.

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Já gora,

Veja-se esta pacífica e divertida imagem popular russa…

Está datada de 1770 e transporta uma série de simbólica que parece alusiva ao poder e à guerra. Se o Jorge estiver interessado em traduzir, esteja à vontade.

Horta de Literatura de Cordel. O continente submerso o grande teatro do mundo os sobreviventes do Dilúvio: monstros nacionais, monstros estrangeiros, selecção, prefácio e notas- Mário Cesariny, Assírio & Alvim, Lisboa, 2004.

Imagens:
1- fera de Chaves Relação…)
2-Manticora- Iluminura de bestiário medieval (1220-1250- Bodleian Library, University of Oxford, (Bodley 764)
3- Alfred Jarry, Cesar Anticristo (César-Antechrist
Paris, Éditions du Mercure de France, 1895
p. 49 ; Department of Special Collections
Kenneth Spencer Research Library
University of Kansas (KSRL: A280)
4- gravura popular russa, c.1770 (Gilbert Lascaux, Le monstre dans l’art occidental, un problème esthétique, Klincksieck, Paris, 1973

6 comments on “a fera de Chaves”

  1. zazie says:

    many, many thanks caro Jorge!
    então é mais uma teratologia do género…
    resta saber se ainda há por aí coisas destas…

    bem, o que já não há é comunas destes que até aprendiam russo antigo “:O))))

    ehehe beijinhos, estou a brincar mas admiro muito quem estuda línguas destas

  2. Jorge says:

    Hum…. Pavoroso, este russo antigo… e não estou só a falar do cirílico, bastante diferente do de hoje.

    Parece, segundo a legenda, que encontraram aquele animal na margem do rio Uler a 27 de Janeiro de 1775, e o resto são medidas numa unidade arcaica qualquer lá deles.

    Enfim, petas várias…

  3. zazie says:

    beijinhos. É muita simpatia tua. mas se estás a papar algum chocolate e não dizes nada, vais ver…

    “;O)))

  4. Ainda estou a lamber os dedos. Estes teus textos são talvez a melhor parte da minha blogosfera.

  5. zazie says:

    obrigada Afonso (espero que não leva a mal este tratamento) ehehhe

    eu gosto destas coisas e tinha por cá as imagens… não deu muito trabalho

    beijinhos

  6. Excelente exemplo de serviço público, esta “peça de divulgação cultural”, como lhe chamaria um conhecido general de artilharia dado a coisas de livros.
    É trabalhoso, consome tempo, paciência e é dado de barato a quem o quiser ler.
    Obrigado.
    Manticora, manticora…hei-de perguntar ao flaviense autor da Origem das Espécies o que pensará ele disso…
    Cumprimentos

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