Mais uma estimulante deambulação de José Pinto Castilho, que da zona do Castelo viaja pela história da heráldica pátria. Antevendo o mito, para além do símbolo, o autor – qual Baudolino- faz falar o que não se vê, terminando com um mistério em torno de uma ausência icónica.

(…)O escudo de armas de Portugal tal como aparece hoje na bandeira da República Portuguesa tem uma longa história onde se dá conta de uma raíz que alcança os primórdios da emergência do reino até ao condado portucalense. É assunto estudado por muitos [v. por exemplo 10, 11, 12], mas parece sempre poder juntar-se algo mais que acrescente sentido, nem que seja adensando um mistério.
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O mistério do escudo sem castelos

No Bairro Alto em Lisboa existe um edifício que antes foi designado Real Colégio dos Catecúmenos e foi fundado pelo rei e cardeal Henrique em 1579, sendo sede da cristianização dos catecúmenos e escola da arte de calafetar os navios – profissão dupla e bem importante na época dos descobrimentos. Foi reconstruído após o terramoto de 1755 é convertido mais tarde em asilo de infância por Pedro IV em 1834 e designa-se hoje Estabelecimento de Calafates da Fundação D. Pedro IV.
O escudo de armas desse edifício que se mostra na figura 10 parece proveniente do tempo da fundação do colégio pelo cardeal-rei, pelo enquadramento das armas e pelo grau de erosão da pedra, bem como pela legenda que está acoplada, e tem uma particularidade notável: não tem castelos.

Podemos interrogar-nos se tal aspecto, a ausência de castelos, é um signo arbitrário ou antes motivado. Não se vê como possa ser arbitrário: um esquecimento do artista numa encomenda real seria imperdoável e a largura da moldura circundante mostra que dificilmente havia espaço previsto para pôr os castelos. Dir-se-ia que o cardeal-rei Henrique optou por mandar obliterar os castelos, talvez porque o país estivesse à beira de ficar orfão, depois do desastre de Alcácer-Quibir e na expectativa da morte próxima de um velho rei de quase setenta anos, sem descendência.
Sem castelos o legado permanece aberto, indeterminado, estranho. E de facto o cardeal-rei no testamento não nomeia herdeiro do trono de Portugal. Citando Mário Domingues o rei assim escreveu: e porque ao tempo, que faço este testamento, não tenho descendentes, que direitamente hajam de suceder na Coroa destes Reinos, e tenho mandado requerer aos meus sobrinhos, que algum direito podem pretender, e está esse caso da sucessão em justiça, por quanto não declaro aqui agora quem me há-de suceder, será quem conforme a direito houver de ser, e esse declaro por meu herdeiro e sucessor (…) [21].

Zero castelos é um símbolo quando sucede a uma representação sistemática de sete castelos: o número zero demorou séculos a ser internalizado como tendo existência própria no sistema numérico árabe e europeu, porque simbolizando o nada ainda significa alguma coisa o que gera um paradoxo que foi sendo resolvido [v. 22] significando ou denotando a presença de uma ausência.
Podemos assim prosseguir mais um passo abdutivo: também se pode dar o caso de o cardeal-rei querer deixar marcada uma outra presença.(…)

A ler, na íntegra, na Revista Triplov .

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