Relação de um prodígio
Teria ao nosso parecer nove varas de altura; o rosto de homem, mas tão disforme que causava horror; o peito largo, a pele como concha de tartaruga, antes polida. As pernas compridas, e delgadas, os pés de unha fendida como de boi, porém tão grandes que, deixando-os estampados na terra, medidos depois os seus vestígios, se achou em cada um a terça de uma vara de comprimento
Um rabo como às vezes se costuma pintar o Demónio, comprido, cabeludo, cheio de nós. Trazia na mão direita uma pena, e na esquerda uns cadernos de papel escritos.
Marchou com passos graves, e lentos pela rua que se encaminha para a Igreja, e chegando ao meio da Praça arrojou tanto fogo pela boca, olhos, narizes e ouvidos, e de um ardor tão activo que não só convertia em cinza tudo o a que chegava, mas até puderam as suas ardentes exalações deixar de cor de metal as cornijas da Igreja (…)
O Monstro (ou o Demónio conforme se entende) arrojando no meio da Praça o papel, e a pena, voltou com um passo vagaroso, olhando para os circunstantes, que de longe apareciam a uma e a outra parte, clamou com brados horríveis: Eu sou a Figura dos pecadores do Paraguay. Foi tão horrível e forte o bramido com que acabou de proferir estas palavras, que muitos dos ouvintes caíram com acidentes, e algumas aves que iam voando se precipitaram mortas.
Levou consigo uma menina de idade de quatro anos, três meses, e dez dias, filha de uma viúva chamada Maria Garcia, que na quarta-feira seguinte foi achada sem lesão alguma em um dos montes vizinhos, entre duas pombas (…)
In Horta da Literatura de Cordel. O continente submerso o grande Teatro do Mundo os sobreviventes do Dilúvio: monstros nacionais, monstros estrangeiros (selecção, prefácio e notas de Mário Cesariny, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004
2 comments on “Relação de um prodígio”
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Vê lá não vos chamusque o bode…
“;OP
Vou convidá-lo para o Diário Ateísta.