Errado! Não é o caracol, é um elefante com a casa às costas.

Na verdade este falso-monstro é produto de um erro de tradução. Nas viagens fantásticas à Índia (de Majore Índia), Jourdain de Séverac descreve com grande entusiasmo os elefantes que por lá vira: “Estes animais são extraordinários: pelo seu tamanho, pelo peso, pela força e mesmo pela sua inteligência, ultrapassam mesmo todos os animais do mundo. Este animal possui uma grande cabeça, olhos pequenos (mais pequenos que os de um cavalo), orelhas em forma de asas de corvo ou de morcego, um nariz que, nascendo no cimo da testa, desce quase até ao chão, dois dentes exteriores, dirigidos para a frente, de um tamanho, de uma grossura e de um comprimento fora do comum (estão implantados no maxilar superior) […] Têm pés enormes, com seis unhas, que parecem pés de boi ou melhor de camelo. Este animal pode transportar sobre ele, numa espécie de habitáculo em madeira, mais de trezentos homens”.
Depois acentua a inteligência do animal- “que se distingue da brutalidade pela perspicácia do seu entendimento e até pela sensibilidade“.

Ainda que minuciosa e realista, a descrição também se insere na tradição dos “estranhos exotismos de paragens nunca vistas” nos quais toda a ficção é plausível. Como dirá o Cristóvão Colombo, muito mais fantástico será para quem ouvir contar, do que para quem esteve lá e presenciou.

O labor da fantasia não se fez esperar. Na ilustração das Viagens de Mandeville, o dito elefante, descrito por Séverac, também por lá aparece. À letra e com acréscimo de deturpação latina. Onde se falava em “quodam artificio lignis”, a propósito da construção onde cabiam os 300 homens, o ilustrador faz nascer, directamente do dorso, uma autêntica habitação de dois andares e o draconiano animal até possui orelhas de morcego e patas de boi.

Quanto à lendária inteligência, já vimos noutras paragens no que derivou.

Passado um século até o insuspeito e perspicaz humanista Sebastian Brant transformava a passagem original de Séverac. Onde este dizia que o bicho era capaz de obedecer às ordens humanas e que a extrema mansidão contrastava com os dotes de combate, Brant estropeia tudo e afirma que o animal até é crente e honra a divindade, para além de possuir a capacidade para combater dragões.
O gravador vai atrás e ilustra um destes imaginários combates, desenhando a bicharada com tais semelhanças anatómicas que mais parece tratar-se de um fratricídio.

Certo é que o elefante com a casa às costas tornou-se um must medieval com aparições nos mais variados locais.

Mas não se pense que estas historietas elefantíacas ficam por aqui…

Imagens: Mandeville, Livre des Merveilles, in Albert Schramm, Der Bilderschumck der Fruhdrucke, Leipzig, 1921.
Sebastien Brant, Fables d’Ésope, f. 196 verso (Bibliothèque Nationale et Universitaire de Strasbourg.)
misericórdia de cadeiral- St Mary’s church,Berverley, Yorkshire
Ver: KAPPLER, Claude, Monstres, Démons et Merveilles à la fin du Moyen Age, Payot, Paris, 1980

“:O) pois é josé. Estas historietas são deliciosas e dão uma ideia muito mais curiosa de monarcas e príncipes e homens de saber que acreditavam nelas…

há sempre a mania de reduzir a Idade Média às trevas e à Inquisição e esquece-se muita coisa… e o mesmo se passa com o mito do renascimento que “acabou com tudo isto”. Acabou nada. Estas fantasias perduraram por muito mais tempo. O olhar dos nossos antepasados era muito mais ingénuo. Possivelmente também pela escassez de imagens

Isto é delicioso- e não se lê em mais lado nenhum.

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